terça-feira, maio 08, 2012

Tempos de Águas

Os previsões, já se concretizando, apontam que neste ano teremos a maior enchente da série histórica desde 1902, com consequências sempre danosas em especial para as populações das zonas rural e das periferias urbanas.
A Amazônia, na época da enchente, é literalmente um mundão de água onde a correnteza leva cercas, plantas, criações e traz os sedimentos que fertilizam a terra num movimento incessante de destruição, construção e reconstrução. São seis meses morando sobre as águas, em alguns casos, sob as águas, em casas penduradas no nada, com as criações nas marombas, peixes e cobras passando ao redor. Os portos desaparecem e a casa é também o ancoradouro. Aulas são suspensas, as festas escasseiam, os santos se enfastiam e são retirados dos altares, visto que nesses tempos de águas grandes a proteção é mútua, nós os protegemos e eles nos protegem. De julho a agosto um pouco de sol e de céu descoberto para que a água recue e a terra principie dando seus primeiros sinais para que a vida recomece. O cheiro de terra molhada dá nova cor ao ambiente, o mato rebrota, as sementes são lançadas e as plantas nascem, os pássaros voltam a cantar, os peixes se alvoroçam em piracema. Tudo se reconstitui, ressurge a esperança e a dignidade do homem nas várzeas do Amazonas.
Pisa-se na terra firme e apesar da vida dura dos últimos seis meses, que voltará por mais seis e voltará por alguns outros mais, não há conformismo, mas o entendimento de que é um processo gerado pela natureza pelo qual se dá a dinâmica das várzeas amazônicas fazendo com que elas sejam o que são. Nada além da capacidade de compreendê-la e criar condições para superá-la. Os povos amazônicos anteriores à colonização já habitavam a várzea e desenvolveram técnicas que lhes possibilitavam seis meses de trabalho nas várzeas, onde produziam e acumulavam os viveres e outros seis meses de festas na terra firme.
Como tudo tem um porém, o rio não é o mesmo, a Amazônia não é a mesma e as enchentes não são as mesmas, agora parecem cicatrizes de uma ferida tão perto. Em primeiro lugar pela não inserção de técnicas que respeitando o modo de vida das populações ribeirinhas possibilitasse o aproveitamento das várzeas dando qualidade de vida aos seus moradores sem a necessidade de eles deixarem de ser o que são. Homens e mulheres de ombros encurvados sob a chuva monótona e o sol escaldante continuam a produzir e a viver como antes.
Em segundo lugar porque parece que Deus se enfadou e as enchentes se tornaram mais frequentes. Na série histórica das cheias acima de 29,00 metros a primeira registrada foi em 1909, com 29,30 metros e de lá para cá, entre as dez maiores, seis ocorreram nos últimos quarenta anos. O conhecimento científico existente sobre o ciclo das enchentes possibilita antever e antecipar as ações de Estado.
A previsibilidade das enchentes decorre do regime dos rios da Bacia Amazônica que está, antes de tudo, condicionado ao regime de chuvas. Cortada pelo equador em sua porção norte, a Bacia Amazônica sofre a influência do regime fluvial dos Hemisférios norte e sul. A maior quantidade de chuva e especialmente a coincidência nos dois hemisférios, resulta em maior volume de água e, em decorrência, grandes enchentes. O maior volume de chuva resulta da circulação geral atmosférica dentro da zona intertropical sul-americana.
Portanto, a enchente é um fenômeno natural, suas consequências, nem tanto. Parodiando parte de um poema do poeta Thiago de Mello, somos filhos da floresta e da água, o que explica esse nosso jeito de amar as coisas e de carregar nos ombros grandes fardos, mas também e principalmente esperança.
Fonte: D24AM 

quinta-feira, maio 03, 2012

Mormaço das calçadas


Na última quinta feira fui obrigado a caminhar pelas ruas Eduardo Ribeiro, Joaquim Sarmento e Lobo D’Almada. Como sempre acontece, foi para mim uma tristeza e motivo de indignação. Precisava fazer isso com o máximo de rapidez. Mas não foi como planejado. As lindas calçadas de mármore de liós de minha infância se transformaram em armadinhas perigosas. Na Lobo D’Almada, entre a Saldanha Marinho e a Henrique Martins, nos fundos de uma grande loja, há um enorme buraco. Para transitar nesses calçadas dilapidadas pela incúria de administradores municipais que odeiam a minha cidade, é preciso andar com muito cuidado. Todos os passeios estão esburacados, oferecendo perigo aos transeuntes. Nessas calçadas internas, não há camelôs. E não os há porque as calçadas são estreitas e acidentadas. O mais trágico é que o que se pode ver nesse pequeno trecho do centro histórico, pode ser generalizado para toda a capital amazonenses, esse imenso favelão, esse imenso monturo de lixo real e político. Observei como as pessoas passam por ali e usam aquele espaço urbano. Seguem pelas estruturas destroçadas como se campo minado fosse. Nos bairros, praticamente todos os frutos de invasões estimuladas por uma classe de políticos ignorantes e oportunistas, mais parece um urbanismo medieval. Não há calçadas, e quando há, são tão estreitas, com menos de um metro, e completamente desiguais, pois cada morador inventa a sua própria calçada. Vi muitos desses exíguos passeios de meio metro obstruídos por carros estacionados com meia roda sobre o espaço dos pedestres, obrigados a arriscar a vida no meio fio dessas ruelas tortuosas em que os infames moto taxis trafegam em alta velocidade e os motoristas particulares, que recentemente se motorizaram comprando carros em 30 meses, também exercem seu   novo poder fazendo seus veículos verdadeiros bólides. E o que se lix. Por isso não é de espantar que Manaus tenha recebido a pior classificação no quesito mobilidade urbana, entre as sedes da Copa do Mundo de 2014. Mobilidade significa vias organizadas, limpas e seguras. Além de calçadas que para o poeta Charles  Baudelaire, que nelas costumava flanar, significam modernidade, há a questão do transporte público de massas, a questão do estacionamento e a estruturas do trânsito. No item calçadas nossa cidade regrediu ao nível das aldeias mais infectadas e subdesenvolvidas. Mas isto não parece comover as autoridades municipais, muito menos aos vereadores. Para estes últimos, o assunto do momento é o auxílio paletó (que, aliás, os faz mais caipiras) e os subsídios do 13º, 14º e sabe-se lá que mais mumunhas vivem arrancando do erário público. Há na publicidade mentirosa da Prefeitura de Manaus um tal de Choque de Ordem em andamento. Só se for choque nos cofres públicos para favorecer as empreiteiras como a Delta e a Esparsanco, pois no mundo real das calçadas degradadas e da malha urbana apodrecida o que há é o choque da desídia. O estacionamento de veículos segue a mesma permissividade implantada como política de Estado. Lojas e restaurantes privatizam as calçadas em estacionamentos exclusivos. Na avenida Getúlio Vargas há um restaurante que atravanca a calçada com os carros de incautos fregueses, que pelo nível da cozinha bem merecem o diploma da barbárie. Outro dia vi duas viaturas do Detran estacionados naquela calçada, provavelmente comendo de graça a gororoba suspeita que ali servem. Na praça Oswaldo cruz, a Praça da Matriz, os infectos restaurantes que ocupam o passeio público são casos de vigilância sanitária, se isto existisse na cidade. É demais para um coração hipertenso de um simples mortal.

Autor: Márcio Souza.