sexta-feira, abril 23, 2010

DESPORTO, CIDADE E NATUREZA

Importância e atualidade que resultam das profundas alterações que estão a ocorrer no pensamento e na doutrina cultural contemporâneas, face às práticas e aos modelos do Desporto, à organização das cidades, às novas relações com a natureza e às interdependências estabelecidas entre cada uma destas instâncias.
Vou buscar em alguns trabalhos que ultimamente publiquei, o enquadramento que julgo necessário para interpretar as relações entre o desporto, a cidade e a natureza.
Assim, começo por afirmar que este inicio de século assiste ao surgimento de novos paradigmas civilizacionais, que de forma lenta mas profunda, estão a alterar os estilos e os modos de vida, as relações sociais, as expectativas e motivações dos cidadãos.
Esses novos paradigmas, tem um contexto social, caracterizado por aquilo a que os cientistas sociais designam por sociedades industriais desenvolvidas e traduzem-se em mutações de ordem econômica, técnica, cultural e social.
Creio que, não existe hoje, no quadro da vida social, um setor que escape a estas transformações.
Também na cidade, também no desporto, também na atitude face ao uso da Natureza.
A cidade cresceu. Dividem-se as opiniões sobre como desenvolveu. Certo é que mudou radicalmente a sua geografia e topografia físicas e se alteraram as suas tradicionais funções.
Assistiu-se de forma crescente, a uma desenfreada terceirização, a um aumento de densidade do tráfego com conseqüentes disfuncional idades, a uma crescente especulação fundiária e imobiliária, à degradação dos espaços de uso público, à ruína do parque habitacional construído, à ausência de tratamento dos elevados índices de poluição atmosférica e sonora, à periferização dos locais para habitação.
A introdução da lógica do desenvolvimento industrial intensivo, assente na maximização dos meios e num crescimento ilimitado, cumulativo com um inadequado ordenamento do território e um inexistente planejamento urbanístico, criaram cidades de concreto armado, em que os especuladores imobiliários e os construtores civis, foram os verdadeiros arquitetos da paisagem das cidades, assumindo um papel semelhante, ao que outrora, haviam assumido os agricultores no desenho da paisagem rural.
Fenômenos cruzados de vária natureza sinalizam algumas patologias da cidade: graves disfuncionamentos nos transportes e na circulação, zonas inteiras marginalizadas, desenvolvimento de novas coroas de pobreza e exclusão social.
A cidade atual parece ser hoje mais funcional, mas também mais fria e mais anônima (Lypovetsky, 1991), o que cria novos fatores de risco nas relações humanas e sociais, dado que contrariamente a períodos anteriores a cidade ao amortizar as relações entre os cidadãos destruiu o espaço urbano, como um espaço de sociabilidade e solidariedade.
Este fenômeno, não deixa no entanto de comportar movimentos aparentemente contraditórios.
Por um lado assistimos a uma massificação ao nível das idéias e dos comportamentos, mas por outro a movimentos de autonomização e individualização de gostos e estilos de vida.
Contrariamente à visão de Marcuse, quando nos falava do homem unidimensional o que parece verificar-se é que o homem atual é cada vez mais pluridimensional.
De todo o modo, manda a verdade que se reconheça que este aparente individualismo é muitas vezes acompanhado por uma grande fragilidade no exercício da cidadania e pelo crescente aparecimento de uma sintomatologia urbana caracterizada a nível individual prestados de melancolia, estres, vazio e depressão, conduzindo a verdadeiros cortes com a realidade social envolvente, numa espécie de autismo do homem moderno.
Num outro plano, cresceu a sensibilidade pública para a problemática do ambiente.
Ultrapassada a fase fundamentalista e das correntes naturalistas, da natureza como universo salvador, e de todo o conjunto de clichês e signos mais ou menos folclóricos (o arroz integral, as sandálias de couro e as saias indianas), surgiram na cultura e na ação cívica contemporâneas, movimentos no sentido de procurar conciliar o desenvolvimento social com o equilíbrio dos ecossistemas.
As teorias desenvolvimentalistas que conduzem à utilização maciça dos recursos naturais fizeram surgir movimentos de opinião que aumentaram a percepção social sobre os problemas da qualidade de vida, nela incluindo a qualidade ambiental.
Estes movimentos têm permitido que progressivamente se crie uma consciência de cidadania, cujo exercício vai no sentido de obstar a que se rompam equilíbrios necessários à vida de todos nós, se consciencialize que os recursos naturais são finitos e que portanto sendo necessários à vida do homem e das sociedades não têm capacidades ilimitadas de auto-regeneração.
Estas preocupações cívicas tiveram de resto, tradução política no plano dos discursos e das representações partidárias, com o aparecimento de uma nova cultura ecológica, e com uma crescente "verdificação" da problemática do desenvolvimento; não devemos usar do ambiente nada que a natureza não possa repor por si, e portanto só se devem utilizar recursos totalmente renováveis.
Também no desporto as coisas se alteraram. Assistimos ao aparecimento de novos desportos, a novas maneiras de praticar desportos antigos, mas sobretudo a uma alteração na utilização desportiva do corpo.
Esta alteração correspondeu a novos modelos e práticas corporais, onde o
estatuto social do corpo adquiriu uma nova relevância sinalizadora de novos tempos.
A um corpo a quem eram solicitadas despesas essencialmente energéticas para a obtenção de objetivos que lhe eram exteriores (o resultado, a marca, a vitória) surgiram modalidades onde o corpo é meio e fim, de movimentos de prazer sensório-motriz.
Curiosamente estas práticas surgem tendo como palco, cenário e público, a natureza.
A água, a terra e o ar transformaram-se assim num grande ginásio. No mais amplo, belo e perfeito espaço desportivo, local para o namoro e o casamento, entre o corpo e o espírito, entre a razão e o prazer, entre o risco e a aventura.
Surf e Wind-surf, body-board, skateeskate-board, piraguismo, skate-snow, escalada, caminhada, asa delta, paraquedismo, parapente, rafting, triatlo e duatlo, aí estão a sinalizar novos tempos e diferentes investimentos.
A natureza passa assim a ser parceiro indispensável, exigindo a sua preservação, como condição necessária.
Mas também com a cidade, o desporto e a natureza, criaram novos cruzamentos.
Assistimos nos últimos anos a uma re-ecologização do espaço urbano, trazendo para o interior da cidade práticas de outros espaços, através de uma progressiva deslocalização dos seus territórios tradicionais.
A tradicional especialização dos espaços urbanos exige por isso uma reclassificação.
A cidade não é mais e apenas, o espaço de trabalho, de circulação, de troca e eventualmente de habitação. Ela torna-se também um espaço de uso desportivo, com diferentes espaços do tecido urbano, a serem objeto de novas apropriações e diferentes usos.
As praças, lugares tradicionais de encontro e convívio, de realização de atividades de natureza comercial (feiras, mercados, espetáculos) ou de mostra patrimonial, são ocupadas por práticas lúdico-desportivas.
Os passeios públicos, objeto de apropriação por parte de simpatizantes do roller do skate ou do jogging.
Os parques e jardins ultrapassaram a fase em que predominava como sinal lúdico o parque infantil para incluir na organização do espaço tipologias de equipamentos desportivos: o polidesportivo de ar livre, os campos de tênis até ao circuito de manutenção.
A própria rede viária, promove a bicicleta, como meio individual de transporte, (carregada de simbolismos ambientais por ser não-poluente), também denominada de ciclovias, como uma alternativa ao congestionamento de tráfego nas cidades, como meio de uso desportivo, ao estabelecer no desenho da rede viária, pistas ou corredores exclusivamente para bicicletas (pistas cicláveis).
As próprias zonas de habitação e os respectivos condomínios, têm, como fator de valorização dos respectivos espaços, a preocupação de incluir equipamentos desportivos disseminados ao longo da malha urbana, e aproximando o desporto do cidadão.
A esta alteração não são indiferentes, as conseqüências resultantes das alterações verificadas no mundo das práticas do desporto e que têm conduzido a uma progressiva desportivização da própria vida social.
O desporto surge deste modo, como interface frente aos grandes desafios que hoje se colocam na conciliação entre o desenvolvimento social, a organização da cidade e a proteção da natureza, num quadro de respeito pela qualidade ambiental da vida em sociedade.
A ser assim, o Desporto, elevar-se-á à qualidade de interlocutor privilegiado, ao supor para o seu desenvolvimento relações mais equilibradas entre o homem, a cidade e a natureza.
Vejamos sumariamente como: O aumento das práticas do desporto que supõe a presença de elementos naturais, como espaço indispensável à sua realização faz de imediato surgir a óbvia necessidade de defesa da natureza o que supõe um código de conduta desportiva na sua utilização.
Faz sentido introduzir, aplicado ao desporto, conceitos oriundos das ciências do ambiente como o "efeito do impacto" e da "compatibilidade" entre a natureza e o respectivo uso desportivo.
Esse código ambiental de conduta desportiva, deve ser peça de uma adequada educação e formação desportivas.
Mas para além desse código de conduta desportiva é indispensável medidas legislativas cautelares de utilização intensiva dos recursos naturais.
A procura de práticas desportivas em contato com a natureza fez surgir uma indústria de tempos livres que se não for devidamente enquadrada, corre o sério risco de consumir elementos naturais, ao nível da paisagem, ao nível dos recursos e ao nível de não respeitabilidade das características bio-físicas dos solos.
Acrescente massificação do turismo de tempos livres e a importância dada às atividades de contacto com a natureza, indiciam que estarmos perante um sério risco de progressiva dilapidação de bens não renováveis.
A oferta turística em tudo o que comporta de infraestrutura pública e de serviços privados, carece de uma rigorosa disciplina, no sentido de serem respeitados meios e índices de ocupação do solo e de exploração do meio.
Igual raciocínio no que concerne às atividades desportivas.
O fato de assistirmos a enormes pressões no uso indiscriminado, sobretudo do solo e da água, exige a introdução de fatores condicionadores, de modo a que se estabeleçam regimes de compatibilidades entre a procura social e a capacidade de utilização, recuperação e regeneração do meio natural.
Também no plano da organização das cidades é indispensável encontrar uma nova centralidade para o Desporto.
O Desporto como meio mais procurado pelo cidadão para a ocupação do tempo livre, emerge no interior de uma cultura do lazer, que não pode viver em relação à cidade, como um corpo estranho, intrometido às vezes, aparentemente clandestino muitas outras, periférico quase sempre.
A nova cidade deverá ser o lugar, do trabalho, da cultura e do tempo livre, e por isso também, do progresso, da tecnologia e do ambiente.
A nova cidade será plurifuncional. Os espaços para o desporto serão tendencialmente cada vez menos desportivos e mais multiculturais, onde se possa desenvolver um leque muito variado de atividades.
Mas a nova cidade será também dominada pelas modernas tecnologias e pela possibilidade de acrescentar ao espaço físico urbano, novas oportunidades de relação com a natureza.
O homem será o elemento central do novo ordenamento. A palavra de ordem é: reapropriação. Seja das praças, dos passeios, das estradas libertas de tráfego, dos espaços destinados a permitir do mesmo passo a fusão da ocupação dos tempos livres e da cultura (Longhi, 1991).
Tudo isto supõe um novo ordenamento do território, um outro planejamento urbano, uma outra lógica entre o espaço natural e o construído. Entre o espaço privado e o espaço público. Uma nova cultura urbana. Uma nova cidadania.
A moderna cidadania, compreende direitos civis, políticos e sociais os quais assentam em valores universalmente aceites. Sabemos pela análise histórica que o desenvolvimento da cidadania obedeceu a dois aspectos distintos: inclusão progressiva de novas categorias sociais no direitos de cidadania existentes; inclusão de novos tipos de direitos na cidadania.
Sumariamente podemos dizer que os direitos não nasceram todos de uma vez. E que ao nascerem não contemplaram, de imediato, todas as classes e categorias sociais.
Sabemos ainda que a igualdade de todos, perante os direitos, está nas sociedades modernas salvaguardada do ponto de vista jurídico-formal, mas que a igualdade do seu exercício numa sociedade dividida por condições de desigualdade, introduz diferenciações na prática da cidadania.
Pesem embora estas circunstâncias, o direito ao desporto, como um novo direito urbano de todo o cidadão é um dado indiscutível da cultura das sociedades modernas.
O exercício deste direito estimula os diálogos ambientalistas. É espantoso como no direito ao desporto e na preocupação ambiental se cruzam duas perspectivas oriundas de uma raiz comum.
O olhar e o pensamento ambientalistas surgem como um travão à ideologia do crescimento ilimitado, introduzido pela dinâmica do processo de desenvolvimento do capitalismo e assente na tecnologia consumidora da energia e das matérias primas.
O direito do cidadão ao desporto surge como alternativa ao modelo unitário do desporto de competição e de rendimento absoluto, o qual teve origem no processo histórico-social similar aquele outro.
Ambos a alertarem que o progresso não é assegurado automaticamente por nenhuma lei da história. E que o futuro não é necessariamente desenvolvimento (Edgar Morin).
O que hoje se coloca à ação política e governativa é difícil. Neste início de século trata-se, não de governar contra alguém, mas a favor de todos.
O mercado comum das idéias sobre o equilíbrio ambiental foi dado por essa grande vitrine mundial que foi a ECO 92, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, realizada no Rio de Janeiro.
A Terra é a nossa casa comum. É a nossa origem. Será o nosso destino.
A Natureza não é uma imagem de poetas ou pintores. A natureza é a realidade ecológica em si mesma, é o nosso planeta Terra (Edgar Morin).
Tal fato, reenvia-nos para algumas das perplexidades do mundo atual e para a urgência de uma estratégia comum para a salvaguarda de um meio, que também nos é comum.
Os buracos na camada de ozônio, o efeito estufa existente na atmosfera, a desflorestação progressiva de significativas florestas tropicais produtoras do nosso oxigênio, a esterilização dos oceanos, mares e rios, a poluição sem controle, as diferentes catástrofes ecológicas estão a avisar-nos a todos que o inimigo do homem não é nenhum ser extraterrestre. Ele está bem no interior de cada um de nós.
Será que o Desporto conseguirá reconciliar e realiar o homem à natureza, a natureza à vida, e vida a uma idéia de bem estar e de felicidade?
Eis o desafio que a todos se coloca
.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Blog do Barba, deixe seu comentário.