sexta-feira, abril 30, 2010

O FUTEBOL NOSSO DE CADA DIA


Quando se fala em "futebol brasileiro", o que primeiro nos vem à mente é o esporte profissional: os torneios, os clubes, a seleção, os craques. Mas esta é apenas uma parte da coisa toda. Uma parte fundamental, é verdade, em ter­mos de visibilidade e de volume de capital movimentado1, mas relativamente muito pequena se pensarmos no conjunto da sociedade e nas múltiplas formas como o futebol é vivido por ela no dia a dia.

Se os futebolistas profissionais "federados" (isto é, inscritos em federações) pouco passam dos 20 mil no país, estima-se em nada menos que 30 milhões o número de praticantes amadores do esporte2. São 14mil os times amadores (os clubes com departamento de futebol profissional, ou semiprofissional, são cerca de 800) e isso não inclui, obviamente, os "peladeiros" que se reúnem eventualmente para jogar na praia, nas quadras de clubes, escolas e centros esportivos, nos campos de várzea, de fazenda ou de,fábrica, nos terre­nos baldios, nas miríades de campos de grama sintética espalhados pelas grandes cidades brasileiras.

No Brasil, para qualquer lado que se olhe, haverá sempre um gol improvisado, um campo traçado por cal, por giz ou simplesmente pela imaginação. O futebol se desdobrou entre nós numa série de modalidades deriva­das e adaptadas às mais diversas condições de realização: o futsal (antigo "futebol de salão"), o futebol society ou futebol suíço, o showball, o futebol de praia, o futevôlei. Isso para não falar de jogos de natureza totalmente dis­tinta, mas inspirados nas suas regras, na sua história e na sua mitologia: o pebolim (ou totó, como é chamado no Rio), o futebol de botão e os inúmeros games eletrônicos que têm o futebol como modelo e referência. Houve até, nos anos 1970, unia modalidade efêmera e bizarra, o "autobol", jogado por duas equipes de automóveis e uma bola de couro de 1,20 metro de diâmetro3.

O fato de o futebol ter-se popularizado no Bra­sil entre cidadãos que não têm acesso a clubes e boas escolas, e que portanto aprendem a praticá-lo desde a infância em carapinhos irregulares de terra, em ruas esburacadas, em praias e pastos, em meio a vacas, árvo­res ou automóveis, costuma ser evocado para explicar a habilidade ímpar dos jogadores brasileiros, seu "Jogo de cintura" e capacidade de improvisação.

Sem entrar na discussão do quanto pode haver de construto ideológico nessa ideia, o fato é que o futebol no Brasil tem assumido, há um século, as formas mais variadas e vencido os obstáculos mais difíceis.


FUTEBOL NA SELVA: DA COPA DOS RIOS AO PELADÃO


Um dos eventos mais emblemáticos da força mobili­zadora do futebol nos centos mais remotos do país é a impressionante Copa dos Rios, que reúne anualmente times representativos de municípios amazonenses loca­lizados à beira do Amazonas e de outros grandes rios da região, como o Negro, o Solimões, o Madeira, o Juruá e o Purus. Em sua primeira fase entram no torneio todas as seleções municipais que se inscrevem. Esse número inicial varia entre 40 e 50 a cada ano. Alguns dos times viajam até duas semanas de barco para realizar seus jo­gos. Os rios são, na maior parte dos casos, a única via de comunicação entre as cidades envolvidas4.

Também no Amazonas, mais precisamente em Manaus, ocorre há quase quatro décadas aquele que é considerado o maior campeonato amador de futebol do mundo, o Peladão, ou Campeonato de Peladas de Ma­naus. O torneio, que em 2009 realizou sua 37a edição, reúne anualmente entre 500 e mil times da região..Parale­lamente à competição, realiza-se um concurso de beleza entre torcedoras dos clubes participantes, para eleger a Rainha do Peladão. Desfilando com a camiseta dos res­pectivos clubes sobre sumários biquínis, as candidatas completam a dupla conotação da palavra "pelada"5.
Até entre os índios o futebol é uma diversão leva­da muito a sério. Desde 1996 acontecem anualmente os Jogos Olímpicos Indígenas, promovidos pelo Ministério dos Esportes em parceria com os Estados-sedes de cada edição. O evento reúne atletas de cerca de 60 diferentes etnias de todo o país. Desnecessário dizer que o futebol, tanto masculino como feminino, é um dos esportes mais concorridos, ao lado de modalidades mais caracteristica­mente indígenas, como a corrida de toras.
E em Roraima se realiza, desde 1997, o Campeonato das Comunidades Indígenas do Estado, com a participação de quase cem seleções de aldeias. É a maior competição fu­tebolística exclusivamente indígena de que se tem notícia.

Um dos estudos mais interessantes sobre a relação entre índios brasileiros e o futebol é o livro Boleiros do Cerrado, resultado das pesquisas de campo do antropó­logo e ex-futebolista profissional Fernando de Luiz Brito Vianna, que jogou no Juventus de São Paulo e no No­roeste de Bauru com o nome de Fedola. O pesquisador conviveu com os xavantes do cerrado mato-grossense, es­tudando não apenas os times e torneios entre aldeias, mas também o modo como os índios vivem o futebol no dia a dia. Chegou a atuar como treinador da equipe de uma al­deia — e descobriu pontos de contato entre o pensamento lúdico e dual dos xavantes e o universo do futebol6.

Se, até agora, o "futebol indígena" vinha se desenvol­vendo à margem do mundo do esporte profissional, limitando-se a jogos intertribais e com raros jogadores índios chegando aos clubes "brancos"7, em 2010 o Campeonato Paraense da segunda divisão contará com o surpreendente Gavião Kykatejê Futebol Clube. O time, que até o início de 2009 se chamava Castanheira e disputava campeonatos amadores da região, é formado por habitantes da aldeia Gavião Kykatejê situada a 25 quilômetros de Marabá. De seus 26 jogadores atuais, apenas três não são índios8.

Tudo isso sem falar nos jogos com bola praticados pe­los índios brasileiros antes (ou à margem) do contato com os brancos, o que levou alguns ufanistas radicais a apontá-los como precursores do futebol tal como o conhecemos hoje.

No polo oposto ao desse futebol praticado em aldeias e beiras de rio nos confins do país, cresceu ex­ponencialmente nos últimos anos, nas grandes cidades brasileiras, uma modalidade futebolística essencialmen­te urbana: o futebol society, também chamado de futebol sete, futebol suíço e futebol social.

Espécie de intermediário entre o futsal e o futebol propriamente dito, o society é jogado por equipes de sete jogadores, em campos de dimensões reduzidas, geral­mente de piso sintético, mas também eventualmente de areia ou de grama natural. Seus praticantes são, em geral, assalariados do comércio e do setor de serviços, profissio­nais liberais, estudantes, pequenos empresários, executi­vos — uma classe média ampla e heterogênea, em suma.

Apesar do nome estrangeiro, foi no Brasil que o futebol society surgiu, ou pelo menos se institucionali­zou. Um brasileiro, Milton Mattani, criou as suas regras e fundou, em 1996, a Confederação Brasileira de Futebol Sete Society.

Em poucos anos o society explodiu. Hoje há 25 fe­derações espalhadas pelo país e calcula-se em 9 milhões o número de praticantes, 4 milhões deles só no Estado de São Paulo9. Uma constelação de refletores ilumina as noites paulistanas, cariocas, porto-alegrenses... São os campos de futebol society, ocupados por grupos de amigos, vizinhos, parentes, colegas de firma ou de esco­la. A felicidade — ou ao menos a sua promessa — alugada por uma hora.
REFERÊNCIAS
1 – De acordo com um balanço elaborado pela Fifa e enviado em 2001 à Fundação Getúlio Vargas (FGV), o futebol movimenta US$ 440 milhões referem-se apenas às transferências de jogadores.

2 – Conforme levantamento feito pela FGV para a CBF, citado em reportagem do JB on-line de maio de 2001: http://jbonline.terra.com.br/jb/papel/esportes/2001/05/21/joresp20010521016.html

3 – A existência desse pitoresco derivado do futebol é lembrada no livro de Alex Bellos, Futebol – O Brasil em campo (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002); PP. 137-144.

4 – Histórias saborosas da Copa dos Rios de 1997 são narradas em Mário Magalhães, Viagem ao País do Futebol (São Paulo: DBA, 1988). Com fotos de Antônio Gaudérico, o livro reúne reportagens realizadas por Magalhães em 17 cidades de nove Estados brasileiros e publicadas na Folha de S. Paulo entre 1993 e 1997.

5 – Uma divertida descrição de uma das edições do Peladão, bem como uma reportagem sobre personagens e o contexto social da competição, encontra-se em Alex Bellos, op. Cit.; FutebolO Brasil em Campo, PP. 219-240.

6 – Ver Fernando de Luiz Brito Vianna, Boleiros do Cerrado – Índios Xavantes e o Futebol (São Paulo: Annablume/Fapesp, 2008).

7 – O caso recente de maior visibilidade foi o do lateral-direito Índio (José Satiro Nascimento), bicampeão brasileiro com o Corinthians em 1998 e 1999. Membro da tribo xucuru-cariri, nasceu em Palmeira dos Índios (AL). Chegou a atuar no futebol sul-coreano.

8 – Ver revista Placar, edição n0 1.334, de setembro de 2009.

9 – Outros Estados com número expressivo de praticantes são Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, com cerca de um milhão cada, de acordo com dados publicados no site oficial da Confederação Brasileira de Futebol Sete Society: http://www.7society.com.br/.







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