quinta-feira, maio 06, 2010

CULTURA POPULAR [1]


Cultura popular1 está longe de ser um conceito bem definido pelas ciências humanas e especial­mente pela Antropologia Social, disciplina que tem dedicado particular atenção ao estudo da "cultura". São muitos os seus significados e bastante hetero­gêneos e variáveis os eventos que essa expressão recobre.
Ela remete, na verdade, a um amplo espectro de concepções e pontos de vista que vão desde a negação (implícita ou explícita) de que os fatos por ela identificados contenham alguma forma de "saber", até o extremo de atribuir-lhes o papel de resistência contra a dominação de classe.
Essas diferentes concepções orientam a obser­vação do pesquisador para fatos bastante diversos entre si. Tomemos, por exemplo, esses dois pontos de vista extremos. O primeiro refere-se, em geral, a aspectos da tecnologia (técnicas de trabalho, procedimentos de cura, etc.) e de "conhecimento" do universo, enquanto o segundo enfatiza as formas artísticas de expressão (literatura oral, música, teatro, etc.); um tende a pensar os eventos no passado, como algo que foi ou que logo será superado; e outro pensa-os no futuro, vislumbrando neles indícios de uma nova ordem social.
Examinaremos, neste capítulo, dois pontos desse espectro: por um lado, a "cultura popular" concebida por contraste ao termo genérico "cultura" em seu uso corrente e, por outro, como suporte de uma idealização romântica da tradição, que é uma perspectiva freqüentemente encontrada nas teorias de muitos folcloristas, além de ser amplamente difundida entre diversos setores da sociedade. Mais adiante, retomarei a questão de se concebê-la como um modo de resistência.
Embora este trabalho tenha por objetivo introduzir o tema a um público de não especialistas, acredito ser conveniente não escamotear o mal-estar que, em geral, esse assunto provoca em muitos intelectuais. Muita gente torce o nariz, levanta as, sobrancelhas ou movimenta-se com impaciência quando ouve o enunciado "cultura popular". Isto se deve a, pelo menos, dois motivos. Em primeiro lugar, ao fato dessa noção ter servido a interesses políticos populistas e paternalistas, tanto de direita quanto de esquerda; em segundo, ao fato de que nada de claramente discernível e demarcável no concreto parece corresponder aos múltiplos significados que ela tem assumido até agora.
Já é tempo de nos indagarmos sobre o sentido mais profundo dessa expressão e sobre a conveniência de a continuarmos usando como rótulo identificador de não se sabe muito bem o quê.
Esta postura requer do leitor, entretanto, atenção dupla, pois, a um só tempo, estaremos dando os primeiros passos e buscando novos caminhos.
Nas sociedades estratificadas em classes, essas esferas da "cultura" são, na verdade, atividades especializadas que têm como objetivo a produção de um conhecimento e de um gosto que, partindo das universidades e das academias, são difundidos entre as diversas camadas sociais como os mais belos, os mais corretos, os mais adequados, os mais plausíveis, etc. Nesse sentido, "ser culto" é uma condição que engloba vários atributos: ter razão, ter bom gosto ou, numa palavra, como diz o nosso dicionário, "saber, ter conhecimento, estar informado.
Se olharmos à nossa volta, logo nos damos conta que são muitos e variados os valores e concepções de mundo vigentes numa sociedade complexa e diferenciada. Numa cidade como São Paulo, por exemplo, onde grande parte da população descende de estrangeiros e de migrantes rurais, diversos modos de vida são recriados. É imedia­tamente visível a presença da cultura japonesa no bairro da Liberdade; da judia no Bom Retiro; da italiana no Bexiga e na Moóca. A inspiração rural está presente nos indefectíveis tomateiros e pés de xuxu plantados nos quintais de pequenas dimensões: nos canteiros de temperos e chás de ervas construídos em centímetros quadrados, furtados aos chãos de cimento avassalador... É marcante a presença da cultura nordestina em bairros da zona leste e da zona sul da cidade. São várias as religiões, múltiplas as formas de se lidar com as doenças e aflições, variados os modos de relacionamento dentro e fora da família, para não mencionar as estratégias de sobrevivência e as concepções sobre o sentido do trabalho.
Refletindo com cautela, entretanto, logo perce­beremos que por sobre essas diferenças, alguns valores e concepções são implementados social­mente, através de complexos mecanismos de produção e divulgação de idéias, como se fossem, ou devessem se tornar, os modos de agir e de pensar de todos. É essa na verdade uma das funções mais importantes (embora não a única) das escolas, das igrejas, dos museus e dos meios de comunicação de massa. Ainda que muitas vezes de modo indireto e implícito, essas agências procuram aproximar o que é efetivamente dissemelhante, legitimando a supremacia de alguns modos particulares de "saber" sobre os demais.
Aprendemos, por exemplo, na escola ou na propaganda da TV, que "o Brasil é um cadinho democrático de raças". Que europeus, índios, negros contribuíram com suas características biológicas e culturais para formar a nação brasileira. Não obstante, o branco que se precavenha pois "quando um negro não suja na entrada, ele suja na saída".
Sabemos bem que "religião, cor e política não se discute", pois cada um tem a sua preferência. Mas "Deus é brasileiro-, as nossas catedrais são católicas, apostólicas e romanas e os nossos generais democráticos. "Pãos ou pães, é questão de opiniões".
Embora nos ensinem a ter um modo de vida refinado, civilizado e eficiente — numa palavra, "culto" — não conseguimos evitar que muitos objetos e práticas que qualificamos de "populares" pontilhem nosso cotidiano.
Samba, frevo, maracatu, vatapá, tutu de feijão, cuscuz. Seresta, repente e folheto de cordel. Longada, reisado, bumba-meu-boi, boneca de pano, talha, mamulengo e colher de pau. Moringapeneira. Carnaval e procissão. Benzimento, quebrante, simpatia e chá de ervas.
Alguns numa região, outros noutra, com sotaque italiano, japonês, alemão ou árabe, ou ainda de modo supostamente puro, tudo isso conhecemos muito bem e com tudo isso convivemos com grande familiaridade.
Entretanto, quando fazemos nossas teorias — para uso privado ou para serem divulgadas —tendemos a colocar juntas essas "coisas" que são, entre si, tão heterogêneas. Repudiamos, qualificando de ingênuo, de mau gosto, indigesto, ineficaz, errado, anacrônico ou, benevolente-mente, pitoresco, tudo aquilo que identificamos com "povo".
Essa ambivalência em relação ao que é diferente e, especialmente, ao que é identificado com "povo", por parte daqueles que tomam para si para os seus a tarefa de catequizar o resto da sociedade, não decorre apenas do desconhecimento da beleza, eficácia e adequação insuspeitadas do que lhes é culturalmente "alheio". Na verdade, essas atitudes contraditórias em relação à "cultura popular" resultam em grande medida do seguinte paradoxo.
Nas sociedades industriais, sobretudo nas capi-talistas, o trabalho manual e o trabalho intelectual são pensados e vivenciados como realidades profundamente distintas e distantes uma da outra.
Reflitamos um minuto, por exemplo, sobre as diferenças sociais que há entre um engenheiro e um eletricista, ou entre um arquiteto e um mestre-de-obras.
Além da discrepância entre salários e ao lado das formações profissionais diversas, há um enorme desnível de prestígio e de poder entre essas profissões, decorrente da concepção generalizada em nossa sociedade de que o trabalho intelectual é superior ao manual.
Embora essa separação entre modalidades de trabalho tenha ocorrido num momento preciso da história e se aprofundado no capitalismo, como decorrência de sua organização interna, tudo se passa como se "fazer" fosse um ato naturalmente dissociado de "saber".
Essa dissociação entre "fazer" e "saber", embora a rigor falsa, é básica para a manutenção das classes sociais pois ela justifica que uns tenham poder sobre o labor de outros.
Certamente, esse processo está aqui descrito de modo muito simplificado. Mesmo assim, a descrição é útil para os nossos propósitos pois ela indica que, a partir dos lugares de onde se fala com autoridade na sociedade capitalista, o que é "popular" é necessariamente associado a "fazer" desprovido de "saber".
Chegamos aí ao nosso paradoxo. Pois é justa­mente manipulando repertórios de fragmentos de "coisas populares” que, em muitas sociedades, inclusive a nossa, expressa-se e reafirma-se simbo­licamente a identidade da nação como um todo ou, quando muito, das regiões, encobrindo a diversidade e as desigualdades sociais efetivamente existentes no seu interior.
Por mais contraditório que possa parecer, são exatamente esses objetos e modos de pensar considerados simplórios, rudimentares, desajeitados e deselegantes os que reproduzimos religiosa­mente em nossas festas e comemorações nacionais. É, freqüentemente, às chamadas "superstições populares- que recorremos em nossas aflições e para resolver o que, de outro modo, nos pareceria insolúvel.
Essa questão tem fortes ressonâncias “políticas”. Ela evoca imediatamente, por exemplo, as estra­tégias populistas de controle da sociedade. Mas, para não perder o fio da meada, reflitamos um pouco mais sobre a ambivalência de que estamos falando, considerando agora o significado do termo "cultura popular”, tal como ele freqüen­temente aparece no contexto da bibliografia especializada.
Na verdade, a maior parte do muito que já se escreveu sobre esse tema, sobretudo no Brasil, pode ser compreendido como tentativas, ainda que veladas, de resolver esse paradoxo.
Um grande número de autores pensa a "cultura popular" como "folclore", ou seja, como um conjunto de objetos, práticas e concepções (sobretudo religiosas e estéticas) consideradas "tradicionais".
Esse ponto de vista, profundamente arraigado entre muitos e notáveis pesquisadores, é, também, parte importante das opiniões correntes em nossa sociedade já que, freqüentemente, elas informam os livros didáticos e estão presentes nos museus e promoções oficiais de arte e cultura.

 
1 Registra A. Buarque de Hollanda, em seu conhecidíssimo Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, que a palavra "cultura", em seu uso corrente, significa "saber, estudo, elegância, esmero"; ela evoca os domínios da filosofia, das ciências e das belas-artes.

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