quinta-feira, maio 06, 2010

CULTURA POPULAR [2]


Alguns pesquisadores mais sofisticados concebem essas manifestações culturais "tradicionais" como resíduo da cultura "culta" de outras épocas (às vezes, de outros lugares), filtrada ao longo do tempo pelas sucessivas camadas da estratificação social. Nesse sentido, diz-se: "o povo é um clássico que sobrevive". Afirma, por exemplo, Câmara Cascudo, um dos mais competentes folcloristas brasileiros, referindo-se ao modo de vida do sertão nordestino, no prefácio ao famoso Vaqueiros e Cantadores, "a culinária se mantinha fiel ao século XVIII”.
A indumentária lembra um museu retrospectivo. “As orações fortes, os hábitos sociais, as festas da tradição, as conversas, as superstições, tudo era o Passado inarredável, completo, no presente”.
Essa preocupação em fixar no tempo ocorre, freqüentemente, ao lado de um esforço em localizar no espaço a origem e vigência plena desses fragmentos de festas, danças, estórias, culinária, etc., em geral mal alinhavados pelo esforço globalizante dos pesquisadores e colecionadores.
Nas exposições ou museus de cultura popular, por exemplo, quase sempre se representam os países como mosaicos de regiões estanques, internamente homogêneas, como se as fronteiras administrativas e a variação ecológica correspondessem estritamente — e "causassem" — a diversidade cultural no interior da nação.
Os procedimentos de pesquisa coerentes com essa perspectiva são, conseqüentemente, a simples listagem e classificação de objetos, textos e práticas selecionados segundo o critério de "tradição", associados ao levantamento de informações sobre a sua origem e trajetória no tempo e no espaço.
Pensar a "cultura popular" como sinônimo de "tradição" é reafirmar constantemente a idéia de que a sua Idade de Ouro deu-se no passado. Em conseqüência disso, as sucessivas modificações por que necessariamente passaram esses objetos, concepções e práticas não podem ser compreendidas, senão como deturpadoras ou empobrecedoras. Aquilo que se considera como tendo tido vigência plena no passado só pode ser inter­pretado, no presente, como curiosidade.
Desse ponto de vista, a "cultura popular" surge como uma "outra" cultura que, por contraste ao saber culto dominante, apresenta-se como "totalidade" embora sendo, na verdade, construída através da justaposição de elementos residuais e fragmentários considerados resistentes a um processo "natural" de deterioração. Justificam-se, portanto, aos olhos desses teóricos, as tarefas de seleção, organização e reconstrução da "cultura popular" que os ocupantes dos lugares de poder da sociedade atribuem a si próprios.
Como que num exorcismo, esses fragmentos que teimam em emergir aqui e ali, em momentos cruciais de nossa vida, são deslocados para o passado e para outros lugares. O que é identificado e escolhido como elemento constitutivo das tradições nacionais é recriado segundo os moldes ditados pelas elites cultas e, com nova roupagem, desenvolvido, digerido e devolvido a todos os cidadãos.
Esses procedimentos podem ser compreendidos como parte de uma ginástica mental através da qual se procura solucionar um impasse que é da mesma natureza daquele que esboçamos no início deste capítulo, ou seja: como aceitar a recorrência e a força simbólica dos modos "populares" de expressão, sem comprometer a supremacia do saber das elites cultas? Essa tentativa, entretanto, é em vão: o impasse é insolúvel. Senão, vejamos.
Procurando-se "reproduzir" objetos e práticas supostamente cristalizados no tempo e no espaço, acaba-se por "produzir" versões modificadas, no mais das vezes esquemáticas, estereotipadas e, sobretudo, inverossímeis (aos olhos dos produ­tores originais) dos eventos culturais com os quais se pretende constituir o patrimônio de todos. Embora se procure ser fiel à "tradição", ao "passado", é impossível deixar de agregar novos significados e conotações ao que se tenta recons­tituir. Isso é inevitável, porque a própria reconsti­tuição é informada por e é parte de uma reflexão sobre a história da cultura e da arte que, em grande medida, escapa aos produtores "populares" da cultura.
Exemplo flagrante disso são os inúmeros grupos artísticos, em geral patrocinados por órgãos de Estado, que recriam em palcos do mundo todo músicas e danças "populares".
A produção empresarial da arte "popular" qualquer que seja a orientação ideológica e política de seus responsáveis retira-lhe duas dimensões sociais fundamentais. Alterando data, local de apresentação e a própria organização do grupo artístico, ela transforma em produto terminal, evento isolado ou coisa, aquilo que, em seu contexto de ocorrência, é o ponto culmi­nante de um processo que parte de um grupo social e a ele retorna, sendo indissociável da vida desse grupo. Os gestos, movimentos e palavras, em que pese todo o aperfeiçoamento técnico possível, tendem a perder o seu significado primordial. Eles deixam de ser signos de uma determinada cultura para se tornarem "representações" que "outros" se fazem dela.
Através de um esforço realizado, em geral, em nome da estética e da didática, enxugam-se-os eventos artísticos denominados "populares" de características consideradas inadequadas ou desnecessárias, sob o pretexto de revelar-lhes mais claramente a estrutura subjacente.
O resultado de procedimentos dessa natureza, entretanto, é o de "higienizar" esses eventos, ocultando os seus aspectos de pobreza, o seu caráter tosco e, aos olhos de muitos, grosseiro. Essas são reconstituições que o "saber" e o "gosto" cultos das elites podem abarcar. Mas, ao mesmo tempo, elas deixam de ser algo em que o seu "outro", indomesticável, possa reconhecer-se.
Ao se produzir o espetáculo, cortam-se as raízes do que, na verdade, é festa, é expressão de vida, sonho e liberdade. Vida que recusa identificar-se com as imagens fixas que o espelho "culto" permite refletir e que grande maioria dos museus cultua.
Em resumo, meu argumento neste capítulo é o seguinte. Parecem-me equivocadas as concepções, amplamente difundidas, tanto entre leigos, quanto entre muitos especialistas, que podem ser condensadas nas seguintes frases: "o povo não tem cultura", ou "a cultura popular são as nossas tradições-.
Quem é o povo de quem se fala? A expressão "cultura popular", nos dois usos analisados neste capítulo, implica em visões valorativas (negativas) dessa categoria social. Ela se refere, por um lado, a "povo-massa" (em contraposição a "elite"), pensando neste caso como suporte de um não saber. Por outro, como constituindo o espaço social onde se preservam (deturpam) as tradições nacionais.
É evidente o caráter autocentrado, para não dizer etnocêntrico e autoritário, dessas duas concepções. Nenhuma delas é capaz de compreender como possível e viável o que está fora dos seus próprios limites de racionalidade. Ambas são concepções que não se sustentam como objetivas.
Por outro lado, essas maneiras de pensar a cultura pressupõem ou que ela seja passível de cristalização, permanecendo imutável no tempo a despeito das mudanças que ocorrem na sociedade, ou, quando muito, que ela esteja em eterno "desaparecimento". Como sugerem os nossos exemplos, cultura é um processo dinâmico; transformações (positivas) ocorrem, mesmo quando Intencionalmente se visa congelar o tradicional para impedir a sua "deterioração". É possível preservar os objetos, os gestos, as palavras, os movimentos, as características plásticas exteriores, mas não se consegue evitar a mudança de signifi­cado que ocorre no momento em que se altera o contexto em que os eventos culturais são produzidos.
Para que se entenda isso, é preciso que se pense a cultura no plural e no presente e que se parta de uma concepção não normativa e dinâmica. Explicitar esse modo de compreender "cultura" será a nossa tarefa no próximo capítulo, ainda que ao preço de desmancharmos esse objeto ilusório que Antonio Gramsci tão expressivamente denominou, nas suas "Observações sobre o Fol­clore" (1935), de "aglomerado indigesto de fragmentos".

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