quarta-feira, fevereiro 17, 2010

A cidade doente

Para a maioria dos que a vêem de fora, a Amazônia é uma enorme extensão verde salpi­cada de pequenas comunida­des ribeirinhas. Nessa visão, a preservação das matas estaria garantida se o "povo da floresta" tivesse boas condições de vida e não precisasse destruir o ambiente para se sustentar. Pois bem, o povo não está mais na floresta. Co­meçou a sair de lá nos anos 70. Há quarenta anos, apenas 3,5% da população da Amazônia vivia em cidades. Hoje, são 73%. Só as áreas metropolitanas de Manaus e Belém abrigam, cada uma, 2 milhões de habitan­tes. E eles vivem em condições semelhan­tes — mas, em geral, piores — às dos cida­dãos do resto do país. Para os que moram lá, o problema mais grave não é a devasta­ção. São as favelas, o crime e o desemprego — preocupações idênticas às de quem vive nas outras capitais do Brasil, com a agra­vante de que os nortistas dispõem da pior infraestrutura. Na região que concentra 80% da água doce do país, falta água enca­nada. A situação dos esgotos é ainda pior somente 9,7% dos do­micílios do Norte estão ligados à rede coletora. A média nacional é de 51%. Mais de 90% dos municípios não dispõem de ater­ros sanitários. O lixo é disposto a céu aber­to ou despejado in natura nos rios.

Como era de esperar, a ocupação desorde­nada das cidades teve severo impacto na saú­de da população local. As doenças associa­das à pobreza e ao súbito adensamento populacional se manifestaram. A hanseníase, por exem­plo, acomete 54 de cada 100000 habitantes da região, duas vezes e meia a incidência do resto do país. No Pará e no Amazonas, a tu­berculose é quase endêmica. Com o cresci­mento das favelas, a ocorrência dessas doen­ças aumentou, mas os dados oficiais são fa­lhos. Muitos casos não integram as estatísti­cas oficiais porque a população não tem acesso ao sistema de saúde, e eles simples­mente não são diagnosticados. Na Amazônia, que já liderava as estatísticas de casos de leishma­niose, o avanço das cidades sobre a floresta contribuiu para sua propagação. Em ape­nas seis anos, entre 2002 e 2008, o número de ocorrências registradas dobrou: passou de 2,5 para 5,2 por 100000 habitantes.

A urbanização repentina também trou­xe a malária, que é típica da floresta, para o coração das cidades. Como a leishmaniose, a malária é transmitida por um mosquito, o Anopheles, e proli­fera em zonas urbanas por incompetên­cia das autoridades e desleixo dos mora­dores, que mantêm em casa água empo­çada, na qual o inseto se reproduz. A doença é endêmica na Região Norte, que registrou 297000 casos no ano pas­sado. Manaus, que concentra o maior número de vítimas, sofre de um proble­ma adicional para combater o mosquito. Encravados no meio da floresta, seus bairros são de fácil acesso para o Anopheles.

Aterrador para os habitantes de outras regiões, esse cenário de doenças, sujeira e carência envolto pela mata não parece tão ruim para os ribeirinhos. Eles aban­donam as margens de rios e povoados à beira de estradas porque vivem melhor nas capitais e nas cidades médias

O isolamento é um dos aspectos mais cruéis da vida na Amazônia, onde 5% dos brasileiros se espalham por 60% território nacional. Um terço dos amazonidas vive em áreas nas quais o estado não se preocupa em fornecer luz, água potável, serviços de saúde e escolas. Al­gumas localidades são tão remotas que nelas não há dinheiro, porque ele não serve para comprar nada.

O povoamento rarefeito leva os governantes a preterir a região em prol de outras onde a densidade populacional é maior e, por conseqüência, recebem mais recursos do fundo nacional de mu­nicípios. O critério demográfico prejudica a Amazônia na distribuição de re­cursos federais.

Por isso, os governos incentivaram o êxodo em direção às cidades — e ainda o fazem. Nos anos 70 e 80, carros de som do governo do Amazonas convidavam os moradores do interior a se mudar para Manaus, onde haveria vagas na incipiente indústria da Zona Franca. É ingênuo pen­sar que a Amazônia será salva enquanto forem essas as condições de vida de quem mora lá. É necessário salvar também os amazonidas. Seu passado prova que o descalabro atual decorre de uma longa es­tagnação econômica que começou com a crise da borracha.

O futuro da Ama­zônia depende, agora, da urbanização de favelas, de investimentos em água potável, saneamento, iluminação e da promo­ção de um choque de segurança. Há boas soluções para esses problemas. Com um sistema de captação e tratamento de água das chuvas, o Amazonas reduziu em 70% os casos de diarréia em algumas comunidades. Há áreas que podem ser iluminadas com energia solar. As polícias do Pa­rá e do Amazonas podem trabalhar juntas para fiscalizar os rios e evitar que a cocaí­na chegue a Belém e Manaus. Essas me­didas dependem do crescimento da eco­nomia local para ser universalizadas. Caso contrário, a população da Amazô­nia continuará entregue a própria sorte e a floresta, à destruição.

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