quarta-feira, fevereiro 17, 2010

DESAFIO ECOLÓGICO DAS CIDADES

A criação do homem interage incessantemente, para o bem ou para o mal,
com o ambiente natural que a rodeia e envolve. No ambiente construído, a natureza não chega a desaparecer; permanece à vista e não está apenas nas árvores e áreas verdes das ruas, das praças, dos parques, dos jardins e até mesmo dos terrenos baldios. Está no ar, nas águas dos rios, canais e lagoas; está na fauna, nos insetos e nos microrganismos que convivem conosco no ambi¬ente urbano. As nossas construções são assentadas sobre uma geologia especí¬fica, que tem influência sobre tudo o que vai acontecer com elas e os seres humanos que as habitam. Os materiais utilizados nelas (areia, terra, pedras, mármore, concreto, asfalto) pertenceram ao entorno natural. Sua extração tem certas conseqüências, da mesma forma que o modo como o homem os utiliza, dando forma aos projetos arquitetônicos. A impermeabilização do solo, as concentrações de edifícios, os desmatamentos em encostas ou margens de rios, o assoreamento e a retificação ou canalização de rios são ações que afetam o ambiente natural de uma determinada maneira. Se a ação do homem tende ao desequilíbrio, o ambiente natural certamente reage, trazendo efeitos inespera¬dos para o ambiente construído e seus ocupantes: inundações, secas, micro-climas adversos, erosão, desabamentos, enchentes, voçorocas, ambientes inter¬nos insalubres.
Não se trata, simplesmente, da constatação de que devemos preservar espa-ços verdes nas cidades, o que é reconhecido até em propostas urbanísticas essencialmente antiecológicas, mas de assimilar que as cidades elas próprias constituem um ecossistema. Muitos modernistas valorizavam espaços verdes, mas consideravam o ambiente natural um estorvo a ser vencido na afirmação de sua obra criadora. O mestre Lê Corbusier chegou a formulá-lo desta maneira:
A casa, a rua, a cidade são pontos de aplicação do trabalho humano; devem estar em ordem, senão se opõem aos princípios fundamentais que temos como eixo; em desordem, nos fazem frente, nos travam, como nos trava a natureza, ambiente que combatemos todos os dias.
Na escala de planejamento urbano, esse pensamento resultou francamente desastroso ao desprezar a principal matéria da qual é feito o tecido urbano, as calçadas, as esquinas, as praças, as lojas na rua, a densidade humana, que criam a urbanidade, onde o espaço público é primordial e a mistura de usos é arga¬massa integradora.
Tentou-se substituir o tecido urbano tradicional por não-cidades de condo-mínios ensimesmados, com torres cercadas de grades ou superquadras, usos segre¬gados, vias expressas, shoppings e uma sufocante dependência do transporte indi¬vidual. Criou-se um bizarro espaço, nem urbano nem rural, na escala do auto-móvel, não do pedestre. Isso, frequentemente, no bojo de um discurso ambientalmente sedutor: supostamente essa não-cidade seria melhor para a preservação de espaços verdes e para a qualidade de vida dos moradores que a promíscua cidade densa, cheia de gente na rua. Mas as próprias áreas verdes urbanas depen¬dem da dinâmica dos bairros que as rodeiam. Segundo Jane Jacobs:
(...) longe de automaticamente qualificar sua vizinhança, os parques de vizinhança eles próprios são direta e drasticamente afetados pela maneira como
a vizinhança age sobre eles. (...) Existe algo sobre o arranjo da vizinhança que afeta fisicamente o parque? Sim. Essa mistura de usos nos edifícios produz de forma direta a mistura de usuários que entram e saem do parque em horários diferentes. Usam os parques em horários diferentes uns dos outros porque suas programações de vida diárias se diferenciam. O parque então possui uma intrincada seqüência de usos e usuários.
A ecologia urbana, portanto, não se confunde com simples conservação do verde e de amenidades paisagísticas nem com um zoneamento nostálgico da vida rural como os subúrbios motorizados de classe média. A ecologia urbana envolve a sustentabilidade econômica, social, energética das relações humanas e daquelas entre o ambiente natural e o construído.
Minhas manifestações de antipatia pela não-cidade nas suas variantes mo-dernista, "planificada" (condomínios isolados ou superquadras, vias expressas e shoppings), ou aquela mais americanizada do urban sprawl (subúrbios de classe média com charmosas ruas arborizadas de casa e jardim) merecem duas ressalvas. Em primeiro lugar, a existência desses tipos de aglomerados de baixa densidade constitui fato consumado e irreversível. Por outro lado, numerosas pessoas apreciam o estilo de vida que isso lhes proporciona, e isso deve ser respeitado. Portanto, não há como fugir dessas não-cidades, e são necessárias políticas que lidem com os aspectos mais problemáticos sem muita ilusão em relação à possibilidade de modificá-los. Modelos urbanísticos, uma vez imple¬mentados, têm vida muito longa, suas conseqüências sobrevivem a muitas gerações. É difícil reverter atrocidades urbanísticas das décadas de 1950, 60 e 70, ainda que na França discuta-se seriamente a demolição de alguns dos con¬juntos residenciais e uma total reconstrução e remodelação urbanística dessas áreas, hoje povoadas de imigrantes e com uma altíssima criminalidade e incivilidade.
Em relação ao futuro, no entanto, é necessário não perseverar nesses mo-delos, sendo recomendável revitalizar os centros das cidades, reabilitar os bair¬ros residenciais, densos, com usos diversificados, afirmar sem complexos as vantagens da razoável densidade, dos espaços públicos generosos para com os pedestres. Para tanto, é preciso rever regulamentações urbanísticas que consagram densidades baixíssimas e segregam espacialmente o uso residencial do comercial, do institucional, o que quase sempre também resulta em segre¬gação social.
A urbanização vertiginosa dos últimos quarenta anos não é, ao contrário do que imaginam alguns, simples subproduto de uma estrutura rural fundiária injusta. Ou de um tipo de agricultura cada vez mais mecanizada e menos intensiva em termos de absorção de mão-de-obra. É principalmente movida pelo desejo da juventude rural de acesso a oportunidades, bens materiais, co¬nhecimentos e vivências que só a urbe tem como oferecer, precisamente pela sua imensa gama de oportunidades de contato. O australiano David Engwicht, no seu livro Towards an eco-city, define isso de forma eloqüente:
As cidades foram inventadas para facilitar a troca de informação, amizade, bens materiais, cultura, conhecimento, intuições, habilidades e também troca de apoio emocional, psicológico e espiritual. Essa troca é mais difícil se as pessoas ficam espalhadas pela área rural e não têm acesso a essa troca de opor¬tunidades. E por isso que construímos cidades. Cidades são a concentração de gente e estruturas que possibilita a mútua troca, minimizando a demanda de viagem. As pessoas desejam acesso a essa rica diversidade de trocas de oportu¬nidades para sua sobrevivência e crescimento como seres humanos. As cidades são o reconhecimento de que para desenvolver nossas plenas potencialidades necessitamos daquilo que outras pessoas nos podem dar. Cidade é um ecossistema criado pelas pessoas para sua mútua realização. Num ecossistema, assim como numa floresta tropical, tudo está inter-relacionado e é interdependente. Cada organismo provê algo essencial para a vida de outros organismos e, em troca deles, recebe aquelas coisas essenciais para sua própria sobrevivência e bem-estar.
Em todas as cidades brasileiras, em maior ou menor escala, encontramos a cidade informal. A pobreza e a exclusão social são, sem dúvida alguma, dese-quilíbrios que comprometem a existência de um ecossistema urbano sadio. Porém, se a miséria sempre está na cidade informal, nem toda cidade informal é completamente miserável. Há uma certa mobilidade social que dá acesso a novos bens de consumo e espaços de moradia mais amplos (em geral, cresci¬mento vertical das habitações). Dentro da própria comunidade ocorre um desdobramento social, com uma pirâmide local de "ricos", classe média e pobres. Ao lado disso, persiste a precariedade no saneamento básico, na cole-ta de lixo e, em muitos casos, os riscos de desabamento ou inundação, como vem ocorrendo em Manaus.
Algumas medidas são fundamentais, e a primeira delas é estabelecer políti-cas públicas que levem à integração com a cidade formal, à transformação da favela em bairro, não obstante condições urbanísticas originais, o que implica urbanizá-la, melhorar sua acessibilidade, legalizar a posse dos terrenos e das edificações, fazendo os novos proprietários pagarem IPTU, ainda que reduzi¬do, e manter a presença constante do poder público. Isso exclui apenas uma fração relativamente reduzida de edificações em área de risco, irreparavelmente insalubres ou situadas dentro de logradouros públicos, que devem ser removi¬das. Implica, ainda, construir limites, fronteiras físicas claramente demarcadas entre a comunidade e seu entorno natural. Naturalmente, tais limites físicos, sejam muros, grades ou cercas, nada garantem se não resultarem de um açordo de regulação do crescimento pactuado com a comunidade, o que é muitas vezes viabilizado pelo subsídio a projetos geradores de renda, como mutirões remunerados de reflorestamento, lixo ou saneamento, a partir dos quais o poder local passa a ter mecanismos de pressão.
Um aspecto crucial da integração desses bairros informais na cidade formal
é criar regras próprias de uso do solo e de edificações, adaptadas às condições
locais e pactuadas entre os poderes públicos, as comunidades e os demais interessados. Ou seja, a criação de um código de obras e de um código de procedimentos ambientais adaptados àquela realidade específica, uma nova políti¬ca integrada de regularização, ordenamento e contenção da favelização e do
loteamento ilegal, novos instrumentos como o parcelamento e utilização com-pulsória, a regularização fundiária, a titulação, a criação de regras urbanísticas,
construtivas e ambientais específicas para favelas e/ou palafitas.
É preciso regularizar do ponto de vista urbanístico e fundiário a cidade informal e implementar essa verdadeira revolução socioeconômica que repre¬senta o processo de regularização e titulação.
De qualquer maneira, trazer para a esfera da legalidade a cidade informal tem vantagens econômicas evidentes não só para os pobres como para o con¬junto da sociedade, sempre que se consiga criar os mecanismos de inibição e repressão que garantam que a regularização de favelas e loteamentos e novas normas edilícias, mais realistas, não servirão para estimular novas ocupações, parcelamentos e construções irregulares, com suas decorrências de agressão ambiental. Por isso deve existir um componente repressivo, eficaz e fulmi¬nante, para complementar essas novas políticas de legalização da informali¬dade, coibindo, no nascedouro, subseqüentes processos de favelização. A com¬binação de dois movimentos aparentemente contraditórios não é simples, mas é o caminho para uma cidade única e integrada.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Blog do Barba, deixe seu comentário.