quarta-feira, fevereiro 17, 2010

ESTRADAS DE RIOS

Vistas do alto, as estradas da Amazônia assemelham-se ao rastro da passagem de um furacão. Estima-se que 80% das áreas de floresta devastadas estejam a me¬nos de 5 quilômetros de uma delas. Não se poderia esperar outra coisa dessas rodovias, pois elas foram criadas nos anos 70 preci-samente para abrir caminho para a coloni¬zação. Quatro décadas depois, a Amazônia está mal servida por estradas esburacadas, atoleiros e toda espécie de obstáculo ao transito de pessoas e cargas. Quase metade da malha rodoviária é considerada ruim ou péssima pela Confederação Nacional do Transporte. Outros 40% são apenas regula¬res. Tal situação coloca o Brasil diante de um dilema. Não se pode tolerar que uma região com o dobro do tamanho do México e habitada por 25 milhões de brasileiros fique à mercê de um sistema viário de pa¬drão africano. Por outro lado, existe hoje a consciência de que a floresta precisa ser preservada e que cada estrada é um vetor de desmatamento. Elas não apenas atraem migrantes, mas também servem de ponto de partida para milhares de caminhos vici¬nais abertos por madeireiros, garimpeiros e agricultores. O Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) calculou que as estradas não oficiais so¬mam 170 000 quilômetros de extensão. Isso significa que, de cada 10 quilômetros de estrada na Amazônia, 7 foram rasgados ilegalmente no mato.
As grandes rodovias foram aber¬tas pelo governo federal, que pro¬moveu a ida de colonos para a Amazônia na década de 70. Hoje, depois de um prolongado período de abandono, as autoridades têm a obrigação de pôr essas vias em ordem, garantin¬do o bem-estar de quem mora nesses lugares. A dificuldade é como fazer isso e, ao mesmo tempo, impedir que a devas¬tação avance. O governo federal já decidiu asfaltar as três principais estradas que ras¬gam a Floresta Amazônica — e, no que diz respeito à preservação, seja lá o que Deus quiser. Não precisaria ser assim. Duas das rodovias — a Transamazônica e a Cuiabá-Santarém — precisam do asfalto com urgência. Elas atravessam áreas den¬samente povoadas, já bastante desmata¬das, e são necessárias para o desenvolvimento econômico e para melhorar a quali¬dade de vida da população que habita suas margens. O projeto da terceira, que liga Porto Velho a Manaus e atravessa uma re¬gião de floresta intacta, se parece demais com os erros do passado e faz total sentido que seja cancelado.
Como a maioria das rodovias é de terra, a temporada de chuva torna o tráfego difícil, quase impraticável, durante metade do ano
A Transamazônica, que passa por trinta municípios nos estados do Pará e Amazo¬nas, está em situação igualmente precária. Em seu entorno mora 1,2 milhão de pes¬soas, a maioria delas no Pará. O trecho pa¬raense concentra 60% da produção de ca¬cau e 20% de gado do estado. Não há argu¬mento ambientalista capaz de justificar a manutenção de tantos brasileiros no iso-lamento. O caso da BR-319 é totalmente diferente. A rodovia de 877 quilômetros, que liga Porto Velho, em Rondônia, a Manaus, foi aberta em 1973 e asfaltada. Mas, por falta de manutenção, metade da sua ex¬tensão foi engolida pela floresta. Hoje, ela só é trafegável nas extremidades, que foram pavimentadas nos últimos anos. Um trecho de 400 quilômetros está pra-ticamente abandonado desde 1988, sem vestígios do asfalto original e com me¬nos de 150 famílias vivendo nas proxi¬midades. A estrada só não sumiu de vez do mapa porque a Embratel faz reparos constantes para poder realizar a manu¬tenção dos cabos que levam os serviços de telefonia e internet a Manaus.
A pavimentação da rodovia é uma proposta antiga e tem forte apelo na capital do Amazonas e no estado de Roraima, pois tiraria a região do isolamento rodoviário em relação ao resto do país. A obra só não avança porque, em junho de 2009, o Ibama negou licença ambiental. E com razão, uma vez que a estrada ameaça re¬giões de floresta que estão intactas — e é melhor que continue assim. A BR-319 corta uma das áreas com maior biodiversidade da Amazônia. "Só de aves são 740 espécies, quase metade do que exis¬te no Brasil", o Instituto Nacional de Pes¬quisas da Amazônia (Inpa). As 29 unida¬des de conservação ambiental propostas para evitar que a rodovia se tome mais um propulsor do desmatamento só exis¬tem nos papéis assinados em Brasília. O simples anuncio de que a estrada seria recuperada foi suficiente para atrair dezenas de migrantes. O trem poderia suprir a demanda econômica e social sem promover a ocu¬pação desordenada da região, diz o bió¬logo Philip Fearnside, do Inpa. Está aí uma boa sugestão para evitar a repetição dos erros do passado.
Quem viaja pela Transamazônica tem a impres¬são de trafegar sobre um esboço de estrada. O as¬falto só existe em trechos esparsos e a sinalização é um luxo inexistente. Nos seis meses do verão amazônico, a falta de chuvas aju¬da a secar os atoleiros e o tráfego flui em meio a grossas nuvens de poeira. Centenas de tratores ocupam-se de efetuar reparos em vários pontos. É um ri-tual que se repete há décadas no período da seca. Nos seis meses seguintes, quan¬do a chuva não dá trégua, a natureza e o tráfego de caminhões se encarregam de destruir o pouco que foi consertado. Acaba a poeira, volta a lama. Os cami¬nhoneiros já se adaptaram ao ciclo in¬fernal.
A Transamazônica tem mais de 4000 quilômetros de extensão. Se tivesse sido aberta na Europa, cruzaria o continente de Lisboa a Moscou. O projeto original previa a fronteira com o Peru como pon¬to final, mas o ultimo trecho nunca foi construído. A parte nordestina, com cer¬ca de 2000 quilômetros, é asfaltada e pode ser usada durante todo o ano. O governo federal prometeu pavimentar o trecho amazônico com maior população em seu entorno, uns 850 quilômetros, no Para, até 2011. As obras andam a passo de jabuti, em pane devido a pendengas judiciais. Até agora, estão pron¬tos menos de 200 quilômetros. Mantido o ritmo atual, levará mais vinte anos pa¬ra o serviço terminar. Só então se pensa¬rá em asfaltar os restantes 1300 quilômetros de chão batido.
A estrada que atravessa a maior flo¬resta tropical do planeta permite uma visão dolorosa das mazelas do norte brasileiro. No trecho dentro da Amazônia Legal vive 1.2 milhão de pessoas, das quais 66% não têm água encanada e 27% não têm instalações sanitárias. O índice de analfabetismo é o dobro da média nacional A parte mais próspera é no Pará, onde a floresta derrubada foi substituída por pastagens, fazendas, vilas e cidades que vivem em função da rodovia. A produtividade das plantações de cacau é a mais alta do país. Mas a distancia e a precariedade da estrada tornam o frete cinco vezes mais caro que o do cacau da Bahia, o maior produ¬tor nacional.
O asfalto vai permitir o escoamento da produção local e melhorar a vida dos moradores. A maioria dos fazendeiros tem título de propriedade de suas terras. A situação é bem diferente no estado do Amazonas. A floresta está praticamente intacta e há poucas comunidades no entorno da estrada. Em parte, isso se deve à dificul¬dade de acesso. A região tem todos os ingredientes que servem de estimulo a grilagem e ao desmatamento: abundância de terras, estrutura fundiária pouco definida e ausência do poder público. A Transamazônica foi uma das três maio¬res obras de infraestrutura projetadas pelo regime militar na década de 70, ao lado da Usina de Itaipu e da Ponte Rio - Niterói. Naquele tempo, ninguém acha¬va má idéia ocupar a Amazônia com os agricultores malsucedidos de outras re¬giões, sobretudo nordestinos flagelados pela seca. Nunca houve um estudo de viabilidade econômica ou de impacto ambiental para justificar a construção da rodovia e a colonização de seu entorno.
Os primeiros moradores da região cortada pela Transamazônica foram festejados como exploradores de o novo eldorado — mas ficou evidente que quase 90% das terras em torno da estrada eram ruins para a agricultura.
O asfaltamento completo da Transamazônica está previsto para ser feito em três etapas. Ao todo, a obra vai custar 2,3 bilhões de reais aos cofres públicos. Isso significa que cada quilômetro de asfalto sairá por cerca de 1 milhão de reais. É caro, mas é o preço a ser pago por quatro décadas de equívocos falta de planejamento.

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