quarta-feira, fevereiro 17, 2010

A GEOPOLÍTICA DO FUTEBOL

É muito freqüente, quase um lugar comum, o comentário de que o futebol é uma arte. Em geral, esta afirmação se baseia nas belas jogadas executadas, nos dribles perfeitos, nas boas defesas, nos jogadores míticos etc. É esta a idéia que estrutura, por exemplo, a conhecida oposição entre os assim chamados "futebol-arte" e "futebol de resultados". Ao primei¬ro, associa-se a beleza do espetáculo, o prazer lúdico do jogo; ao segundo, a frieza dos objetivos, que, muitas vezes, segundo esse ponto de vista, estaria transformando esse esporte em um antiespetáculo, na medida em que sacrificaria a beleza do jogo em favor de um resultado final favorável, ainda que este seja obtido por meio de uma dinâmica pouco criativa e sem muitos atrativos para os espectadores. Sem querer entrar diretamente nessa polemica, é possível, todavia, introduzir uma outra pers¬pectiva sobre as relações entre esse esporte e sua dimensão estética.
Podemos, na verdade, procurar a "arte" do futebol não somente em seus grandes momentos, na excelência e na excepcionalidade de seus grandes mestres, mas em sua própria con¬cepção e na transformação da sua idéia em ato, ou seja, em sua execução. De forma mais simples, podemos ver essa atividade como uma arte, na medida em que ela produz uma estetização correspondente a uma atitude comum a várias dinâmicas sociais: a disputa territorial.
De fato, o futebol narra um combate. Duas equipes de igual número de jogadores dividem um terreno composto de dois lados dispostos simetricamente. Nesse campo estão dese¬nhados os limites e os movimentos principais que guiam o jogo. Se tomarmos o esquema traçado no campo de cada uma das equipes, veremos que dois semicírculos em posição oposta sig¬nificam principalmente a idéia de frentes, uma de ataque e outra de defesa, definindo um espaço que costuma ser chamado de "intermediária". Recuada em relação ao semicírculo da defesa, encontra-se a "pequena área". Este espaço demarca a idéia de iminência do gol, último bastião da defesa antes da meta.
Entre os jogadores e o campo há a intermediação de uma bola. Ela constitui, à primeira vista, o elemento central de dis¬puta. Observemos, no entanto, que a bola não é cobiçada pelo simples interesse de guardá-la mais tempo ou de simplesmente possuí-la; ela é a forma explícita de demonstrar um domínio de uma equipe sobre a outra. Este fato é mais ou menos evidente, uma vez que os jogadores se distribuem pelo campo de forma a guardá-lo ou ocupá-lo, e, diferentemente das conhecidas peladas, não há a precipitação permanente de todos os jogadores em torno da bola. Mais ainda, esse domínio se traduz em gol quando a bola alcança o espaço mais guardado do campo do adversário. Em um certo sentido, é a posição da bola no campo, seu deslocamento, que, em última instância, informa-nos sobre a força e a fraqueza das duas equipes. Assim, quan¬do na maior parte do jogo o predomínio do controle da bola se fez sobre o campo do adversário, dizemos que aquela equipe que a manteve mais tempo em situação de ataque, ou seja, no campo do outro, dominou o jogo; em outras palavras, dominou o adversário.
Queremos dizer que na organização de um jogo de futebol a bola é um instrumento de agressão e de imposição de um domínio, mas o verdadeiro objetivo, ou ainda para usar um vocabulário mais próximo desse universo, a meta é colocá-la entre as traves do adversário e demonstrar assim o domínio de uma das equipes sobre o campo como um todo.
Eis por que podemos ver nesse esporte uma estetização; ele fala de um combate, em igualdade de condições, entre dois grupos que disputam um campo entre si. Esta disputa não é direta, ou seja, os jogadores não se digladiam entre eles, para impor pela força um domínio este passa pela intermediação da bola. Assistir a um jogo de futebol significa assim, de alguma forma, reatualizar de forma metafórica um tipo de disputa pelo espaço.
Uma partida de futebol instala assim uma dinâmica de grupo, na qual são seguidas estratégias de combate, respei¬tando-se as regras que garantem os direitos e os deveres iguais para as duas equipes, ou seja, garante-se o combate dentro de um universo em que a violência deve permanecer controlada. Em sua expressão mais simples, o espetáculo se compõe de uma luta entre dois grupos coordenados, em disputa pelo domínio de um terreno, que se traduz no domí¬nio da bola. Chamamos isso de esporte, mas poderíamos tam¬bém chamar de arte, pois nesse espetáculo cada gesto é ritualizado e de fato, em seu conjunto, metaforiza os combates terri¬toriais que ocorrem no mundo. Neste último, no entanto, nem sempre as regras são estáveis; em geral, não há igualdade de condições, e a violência não é controlada.

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